Com viés econômico, atenção primária à saúde não vinga

Conceito de cuidado centralizado tem sido usado para controlar custos e barrar acesso a procedimentos caros, dizem especialistas

Na última década, a atenção primária à saúde (APS) foi alardeada como a bala de prata para os problemas das empresas privadas que operam nesse setor. Por esse conceito, difundido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um médico generalista acompanha de forma constante a saúde dos pacientes. Quando há uma intercorrência, esse profissional realiza um primeiro atendimento e direciona aos especialistas, conforme as necessidades. No entanto, esse fluxo vem sendo adotado, em boa parte dos casos, como uma ferramenta para barrar o acesso a procedimentos caros e complexos.

“A atenção primária de saúde está sendo usada no setor privado para controle de custo, não para cuidar da saúde. É importante que se diga que a atenção primária é importante, ainda mais num país pobre como o Brasil, mas não com esse viés financeiro. Não vai resolver a ineficiência do setor”, disse o médico Nelson Teich, ex-ministro da Saúde e consultor de saúde nas áreas pública e privada. Ele também é fundador do COI, rede de clínica oncológica vendida à UnitedHealth Care, dona da Amil.

A opinião é compartilhada por especialistas no tema como os médicos Paulo Marcos Senra Souza, ex-diretor da Amil e cofundador do Instituto Latino Americano de Gestão em Saúde (Inlags), e Sergio Ricardo Santos, que foi CEO da Amil, consultor de empresas como Dasa, Memed e Sami, além da DNA Capital. Na visão de Renato Casarotti, presidente da Abrange, associação das operadoras de planos de saúde, “a atenção primária realmente foi colocada como uma panaceia. A APS se destina mais a pacientes crônicos, gestantes e idosos que precisam de acompanhamento frequente”, disse. Casarotti ressalta que a falta de dados e indicadores sobre a resolutividade é um empecilho para a expansão dessa linha de cuidado.

Nelson Teich: “Atenção primária à saúde não resolve a ineficiência do setor” — Foto: Rogerio Vieira/Valor

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem há anos programas de incentivo à APS, mas a participação do setor é baixa. “As operadoras alegam que não aderem à atenção primária por causa da rotatividade. Elas enxergam que há risco de se investir em gestão de saúde e depois a empresa contratante do plano trocar de operadora. Mas se for ato contínuo, haverá um fluxo de carteiras de planos de saúde geridas com atenção primária”, disse Paulo Rebello, presidente da ANS. Um programa de gestão de saúde primária realmente demanda mais gastos na fase inicial, uma vez que são realizados consultas e exames para analisar o perfil dos pacientes. Os resultados econômicos podem vir no longo prazo, com o acompanhamento, por exemplo, de doentes crônicos que representam cerca de um terço da sinistralidade.

Na opinião do cofundador do Inlags, o insucesso da atenção primária está relacionado ao modus operandi da saúde suplementar. “Há conflitos de interesse e dificuldades de operadoras em fazer gestão de saúde. Em cooperativa, os médicos ganham por volume de atendimentos realizados, mas no longo prazo a atenção primária reduz o número de procedimentos. Tem operadora com rede aberta que gastou horrores com unidade própria que está com uma ociosidade brutal. A operadora não faz, não sabe fazer gestão populacional. Rede própria e atenção primária são coisas distintas”, disse Souza.

O conceito de atenção primária na área privada ganhou um viés tão econômico que hoje se confunde com plano de saúde verticalizado. Nesse modelo de convênio médico, há sempre um profissional de saúde que faz a triagem daqueles que podem ter acesso a médicos especialistas e exames. “Limitar o acesso não significa necessariamente um custo menor. Ao contrário, a pessoa pode descobrir doenças em estágios mais graves por falta de prevenção”, disse Teich, que também é oncologista.

Segundo especialistas do setor, o ideal é que a atenção primária fosse adotada pela própria operadora de planos de saúde, mas hoje os casos bem-sucedidos estão concentradas em operadoras focadas em público idoso e nas empresas que contrataram consultorias, hospitais ou laboratórios de medicina diagnóstica para implementar os programas. “No passado, as operadoras falharam na relação de confiança e não conseguem engajamento dos usuários de planos de saúde. Esse papel começa a ser ocupado pelo prestador de serviço, com ajuda da tecnologia”, disse Santos. O consultor destaca ainda que o setor foi construído incentivando o paciente a procurar diretamente os médicos especialistas, sem passar pelo generalista, o que dificulta a mudança de hábito.

Nos últimos anos, o mercado ganhou operadoras com um modelo baseado em atenção primária sem rede própria, mas elas também ainda não fazem a gestão da saúde de seus usuários de forma pró-ativa, com o olhar no longo prazo – que é o cerne da atenção primária. “Realmente, elas ainda atendem por demanda [do paciente], não há um trabalho longitudinal”, disse Santos.

Ao contrário do que ocorre no setor privado, a atenção primária à saúde é muito mais madura no SUS e na Europa. Na rede pública brasileira, a APS começou a se desenvolver nos anos 1980 e teve um impulso a partir de 2013, com a aprovação da Lei dos Mais Médicos que tem entre suas prioridades a centralização do atendimento médico e o envio desse profissional de saúde às cidades do interior do país que carecem de médicos.

Fonte: Valor Econômico

Deixe uma resposta