The Wall Street Journal – Assistência à saúde gratuita e de qualidade foi um dos pilares do sistema socialista do falecido presidente Hugo Chávez — um direito que ele garantiu por meio de uma nova constituição. Mas dois anos após a morte de Chávez e 16 anos depois de ele ter chegado ao poder, aquilo que o inflamado populista chamava de uma revolução está rapidamente se desintegrando.
A inflação do país, a quase 70% ao ano, é a maior do mundo, e o Fundo Monetário Internacional afirma que a economia vai se contrair 7% este ano. Estatizações e controles de preços generalizados debilitaram a indústria local e os controles do câmbio privam o país dos dólares necessários para pagar por produtos importados. O resultado é a escassez de itens que vão desde autopeças até papel higiênico e material hospitalar, num país que produz muito pouco do que consome.
Da miríade de crises que já se abateram sobre a Venezuela, nenhuma destruiu mais a ilusão de um governo capaz de cuidar de sua população como a do colapso do setor de saúde. Entrevistas com mais de 100 pessoas, entre médicos, pacientes, profissionais do setor e ex-autoridades do Ministério da Saúde, bem como visitas a hospitais públicos em três Estados, revelam um sistema em crise.
As deficiências, que afetam tanto hospitais públicos quanto privados, estão alterando drasticamente a assistência à saúde — a um ponto em que o número de mortes que poderiam ser evitadas está crescendo, dizem médicos e associações do setor.
Remédios também são escassos, desde aspirina a antibióticos, insulina e anestésicos. Todo tipo de equipamento — máquinas de raios X, ultrassom e desfibriladores — estão frequentemente fora de serviço por falta de peças.
Em pouco mais de dois meses, de outubro ao início de janeiro, 12 outros pacientes do Hospital Universitário que necessitavam de cirurgias do coração morreram. Liz Giraldo, de 38 anos, que esperou sete meses por uma válvula cardíaca, morreu na sala de emergência, diz a filha que ele deixou, Erlys Daza, de 19 anos.
“Você sente um alto nível de desamparo”, diz o doutor Marcos Durand, que, juntamente com outros médicos locais, descreveu como os pacientes cardíacos morreram, um depois do outro. “É olhar para a família e dizer: ‘Ele vai morrer. Não há nada que possa ser feito.’”
Gastón Silva, chefe da unidade de cirurgia cardiovascular que mandou González e outros para casa em novembro, diz que todos os médicos vivem com remorso. “Os pacientes vão ao hospital em busca de vida e, em vez disso, encontram a morte”, diz ele.
A ministra da Saúde, Nancy Pérez, não respondeu a inúmeras solicitações de comentário. Autoridades do ministério da Saúde responsáveis pelo combate ao câncer, pela direção de hospitais públicos, pela assistência à saúde nos bairros pobres e pelos dados de saúde também não responderam telefonemas e e-mails.
Enquanto isso, o sofrimento abrange todas as faixas etárias e de renda, sendo os pobres os mais afetados. No hospital infantil J.M. de los Ríos, em Caracas, bebês foram recentemente colocados sobre mesas de escritórios por falta de espaço. Do outro lado da capital, pacientes feridos em acidentes e tiroteios foram enfileirados em camas numa ala do envelhecido hospital de Coche. Alguns disseram que havia semanas ou meses que esperavam por uma operação para corrigir ossos quebrados.
Nenhum dos dois hospitais respondeu a solicitações de comentário.
Dos 45 mil leitos existentes nos hospitais públicos da Venezuela, apenas 16.300 estão em condições de uso. Os hospitais privados, que possuem outros 8 mil leitos, vêm ajudando as sobrecarregadas instituições públicas, mas a situação deles também é precária. A associação que representa os hospitais privados afirma que o número de cirurgias eletivas em instituições privadas — desde operações de joelho até cirurgias bariátricas e outros procedimentos que não são emergenciais — caiu 90%. O motivo é que as cada vez mais minguadas reservas monetárias do país estão tornando praticamente impossível obter os dólares que os hospitais precisam para pagar por remédios e equipamentos importados.
A Venezuela precisa de cerca de US$ 1 bilhão por ano em importações de equipamentos médicos, diz Antonio Orlando, presidente da Associação Venezuelana de Equipamentos Médicos. Mas, em 2014, o governo liberou menos de US$ 200 milhões — uma queda acentuada em relação a 2010, quando as importações do setor somaram US$ 807 milhões.
Em março do ano passado, o banco central afirmou que a escassez de remédios chegava a 50%. Desde então, a instituição parou de publicar esse tipo de dado. A Federação Farmacêutica Venezuelana, que representa o setor farmacêutico, estima que até 70% de todos os medicamentos têm suprimento insuficiente ou estão indisponíveis.
Médicos e gestores de hospitais públicos dizem que o número de cirurgias de emergência — para desobstruir uma aorta, por exemplo — despencou. A falta de mão de obra é mais um agravante. Gestores de hospitais dizem que metade dos formandos em medicina — cujo salário, calculado à taxa do câmbio negro, é de menos de US$ 50 por mês — estão abandonando o país.
No Hospital Universitário, um símbolo do sistema de saúde desde sua inauguração, em 1956, e o primeiro hospital do país a realizar cirurgias cardíacas, médicos faziam até 40 dessas operações por mês dez anos atrás. No ano passado, a média havia caído para cerca de sete por mês. O número de angiografias coronárias, outro procedimento comum em grandes hospitais, caiu de 1.200 para cerca de 100 por ano.
“Como podemos tratar um paciente quando não podemos operar nem dar a eles um remédio contra a dor?”, diz Ivan Machado, um veterano cardiologista do hospital.
O caso de Carmen Quiñones, de 51 anos, é um exemplo do custo humano da situação dos hospitais. No início de dezembro, os médicos de uma clínica privada descobriram que ela tinha um aneurisma abdominal que causava sangramento na parte inferior da aorta, um dos principais vasos sanguíneos do corpo humano.
Ela foi levada às pressas à emergência do Hospital Universitário, onde lhe disseram que ela precisava de um pequeno tubo chamado prótese aórtica para reparar o rompimento.
Mas o hospital, desprovido de recursos, informou à família que eles teriam que providenciar o material necessário à cirurgia — inclusive a prótese aórtica. No dia seguinte, eles encontraram uma, que foi doada por um médico que trabalhava num hospital privado e conhecia a família.
Enquanto a prótese era implantada com sucesso, outra complicação surgiu durante a operação. Os médicos descobriram um segundo aneurisma que requeria uma segunda cirurgia e uma segunda prótese. Desta vez, a família não conseguiu arranjar o material.
“Eu vou operar, mas o que vou pôr nela?”, disse Durand ao filho de Quiñones, Jhon Jairo Pérez, de 24 anos.
Sem a operação, o estado dela começou a piorar e em 26 de dezembro ela estava pronunciando palavras desconexas e perdendo a consciência. O sangue estava vazando da artéria danificada para o pulmão, disseram dois médicos que a trataram, mas o hospital não tinha um estoque de sangue suficiente para substituir o que ela estava perdendo.
“Ela sangrou até a morte”, diz Durand. “Nós não tínhamos prótese. Nem sangue. Ficou muito difícil ajudá-la.”
A situação atual é um contraste marcante com a era dourada de entre os anos 50 e 70, quando a Venezuela era o país mais rico da América Latina. Instalações de primeira linha foram construídas numa época em que imigrantes europeus convergiam para o país. As coisas começaram a mudar durante um longo período de baixa nos preços do petróleo, má administração do governo e uma crise de dívida nos anos 80 que reduziu os financiamentos para o país.
Alguns anos depois que Chávez assumiu o poder, em 1999, ele fez um acordo com Cuba para trazer milhares de médicos cubanos para a Venezuela em troca de petróleo. Os médicos se espalharam pelos bairros pobres, oferecendo consultas e assistência básica. O popular programa Barrio Adentro teria supostamente ajudado Chávez a sobreviver a um referendo sobre sua permanência na liderança do país, em 2004.
Apesar de um boom do petróleo sem precedentes, sérios desmandos na política fiscal — da parte do governo e de todos os ministérios — consumiram gradualmente os fundos do sistema público de saúde. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em 2012, o último ano para o qual há dados disponíveis, a proporção do governo nos gastos com saúde, de 6%, e o percentual dos gastos com saúde em relação à produção econômica anual, de 2%, foram os menores entre todas as principais economias da América Latina.
A frequência com que as autoridades do país falam sobre saúde diminuiu nos últimos meses — apesar das manifestações organizadas por médicos e pacientes em frente a hospitais.
Em vez disso, algumas autoridades do governo do presidente Nicolás Maduro atacaram médicos e líderes de associações de médicos que criticaram o sistema de saúde — chamando-os de traidores e capitalistas gananciosos que não se importam com os doentes. Em setembro de 2014, Maduro, seu ex-ministro do Interior e autoridades locais do Estado de Aragua — todos do partido governista — chegaram a acusar alguns médicos de conspiração.
Maduro mirou um médico de destaque, Angel Sarmiento, chamando-o de terrorista na televisão e ordenando a sua prisão. O médico, que relatou para a imprensa que oito mortes num único hospital público foram possivelmente ligadas a um único agente patogênico, está desde então foragido.
No início de fevereiro, o presidente da associação que representa as clínicas particulares, Carlos Rosares, foi detido para interrogatório pelo serviço de inteligência, após ter divulgado informações para a imprensa sobre o grande número de hospitais impossibilitados de realizar cirurgias por falta de material. Ele foi liberado algumas horas depois. O serviço de inteligência não respondeu a solicitações de comentários.
Diante das muitas vidas em questão, mesmo os burocratas já não são capazes de minimizar a repercussão de casos como o de Gisela Duarte, de 51 anos, um exemplo do esforço que alguns estão dispostos a fazer para obter os remédios de que precisam.
Duarte, uma funcionária pública aposentada que sofre de diabetes, problemas cardíacos e hipertensão, diz que passa a maior parte do dia ligando para farmácias no país todo. Ela descobriu recentemente uma farmácia que tinha insulina, mas ficava a cinco horas de ônibus, na cidade de Coro.
“Eu disse a eles: ‘Eu vou aí’, e estava lá ao meio-dia”, diz ela, recontando como convenceu o funcionário da farmácia a guardar o medicamento para ela. Ainda assim, a batalha por mais remédios continua. “O problema é que, se eu não tomar o remédio, as coisas vão piorar. Posso ter um ataque cardíaco.”
Outros recorrem às redes sociais, valendo-se de personalidades conhecidas como a colunista e apresentadora de rádio Marianella Salazar, que tem quase 500 mil seguidores no Twitter. TWTR +0.10% Ela geralmente reenvia tweets, como um recente que dizia: “URGENTE, precisa-se do remédio CARDIOXANE para uma quimioterapia.” Ela então forneceu o número de telefone para o qual doadores podiam ligar.
Belen Fagundez, de 40 anos, uma professora de Caracas que foi diagnosticada com câncer de mama, não conseguia encontrar a ciclosfosfamida, uma droga que seus médicos planejavam usar no processo de quimioterapia. Tweets e posts no Facebook,FB +0.73% alguns deles repassados por pessoas que ela mal conhecia, levaram desconhecidos da cidade vizinha de Colombia a enviar os remédios de que ela precisava.
“A rede social salvou minha vida”, diz Fagundez. “Ainda não consigo acreditar na sorte que tive.”
No Hospital Universitário de Caracas, aqueles que tentam desesperadamente obter a assistência de que necessitam elogiam a dedicação dos médicos, mas dizem que o sistema de saúde propriamente dito só lhes traz tormento.
Arturo Caivet, de 65 anos, foi outro paciente da área cardiovascular para quem o hospital deu alta em novembro devido à falta de material. O coração de Caivet, enfraquecido por uma aorta calcificada, estava batendo muito devagar e seu organismo estava prestes a parar.
A única esperança dele foi ir a farmácias e fornecedores de equipamentos médicos para comprar uma dezena de produtos necessários para sua cirurgia, inclusive uma válvula cardíaca. Ele gastou todas as suas economias. No início de fevereiro, os médicos do Hospital Universitário o operaram com sucesso.
“Foi muita sorte”, disse ele uma semana depois. “É como tentar respirar. Você diz: ‘Vida, vida.’”